Pesquisa realizada por Alika Ayad (Aline Cristine dos Santos) para
o Módulo Fundamentos do Curso de Formação e Capacitação em Dança do
Ventre oferecido por FIDES Centro de Cultura Lazer e Saúde sob coordenação
de Priscila Genaro.
Existem muitas especulações acerca do surgimento da famigerada Dança do
Ventre, termo utilizado apenas no Brasil já que em outros países ela recebe
outros nomes como Bellydance nos Estados Unidos e Rasq el Sharqui dança do
Leste no Egito. Alguns acreditam que se trata de uma dança mística que fora
utilizada nos primórdios para agradar algumas deusas ou praticada em rituais de
fertilidade apenas por mulheres, porém a história nos mostra algumas
informações envolvendo muito mais do que o mundo elitizado da dança nos traz.
E por que acreditamos nisso? Segundo Thais Batista,2020 “Isso faz parte do que
podemos chamar de argumento mitopético. Esse argumento foi apresentado por
3 autores, Barbara Young, Anthony Shay e Leona Wood para dar nomes a essas
narrativas como poéticas porque são repletas de sentimentalismos, poesias e
aspectos devocionais e também mito por se tratar de personagens que não
necessariamente existiram mas que são conhecidos e possuem grande poder e
simbolismo”
Esta pesquisa se deu através de alguns cursos, workshops, leituras de livros
específicos para entender mais sobre essa possível origem. O trabalho em si
não tem a pretensão de apresentar verdades absolutas, porém é um passeio
bem sucinto com informações de fontes confiáveis a fim de nos fazer refletir e
conhecer um pouco desse processo de surgimento e evolução do que
conhecemos como dança oriental hoje.
UM PASSEIO PELO ANTIGO EGITO: ENTENDENDO A ORIGEM DA DANÇA
DO VENTRE
Ghawazee
Ghazia (singular) ou Ghawazee (plural) é um termo conhecido no universo da
dança oriental que significa forasteiro ou invasor, algumas pessoas dizem que
se refere a invasor de corações. O que ou quem não tem residência fixa,
nômade. Um clã, um povo, também chamados de ciganos egípcios.
Provenientes de várias tribos com origem na Índia, um grupo migrou para a
Turquia e outro para a Europa e o outro para o Oriente Médio e Norte da África.
Os ciganos que costumamos estudar na dança oriental são os que migraram
para o Oriente Médio, esse grupo é chamado de DOM. A maioria deles vive na
Turquia, Egito, irã e Iraque. Entre os Doms os Ghawazee são os mais famosos
por suas danças e músicas. Os homens tocavam e as mulheres dançavam, tanto
em público quanto nas tabernas. Algumas mulheres se prostituiam, não tinham
uma boa reputação. Durante o governo de Muhammad Ali no século 19 foi
proibido que as danças fossem executadas nas ruas do Cairo e Alexandria e
para fugir dessa repressão muitos artistas foram para outras cidades, alguns
grupos foram para o Alto Egito e outros foram para um local no centro da região
Felahi chamado Soumboti. A dança Ghawazee de cada região sofreu influências
culturais diferentes, desenvolvendo-se de forma distinta. Mais de um século após
a expulsão dos Ghawazee do Cairo, o extremismo islâmico aumentou muito.
Atentados começaram a acontecer e foi entre os anos de 1980 e 1990 que
impediram definitivamente a continuação das danças femininas executadas nas
ruas de todo o Egito. Com isso famílias inteiras que viviam da arte perderam
tudo, foram roubadas e perseguidas enquanto o governo proibia a dança nas ruas e admitia que não conseguiria proteger estas artistas dos religiosos
radicais.As Ghawazee tinham uma dança improvisada de entretenimento, com
muita interação com o público, era alegre, despojada e sedutora. Usavam os pés
bem apoiados com movimentos ligados a terra, os pés batiam no chão
acompanhando as batidas de quadril. Usavam também vários acessórios para
chamar a atenção do público como snujs/saggat, pandeiro, candelabro, jarro,
bastão...Faziam movimentos acrobáticos com o intuito de impressionar.
Ghawazee Soumboti (Norte) - É mais antigo e pesado, muito solto, bastante
encaixe e desencaixe de quadril e saggat. Soumboti é uma região do Cairo
situada no norte do Egito nessa região próxima a El Mansoura instalaram se
algumas tribos ciganas com dançarinos e músicos que deixaram sua marca
cultural no local não só na dança, mas na música também. A dança dançada em
soumbiti é Ghawazee. Esse estilo é muito sensual, forte e natural. Por estar em
meio a natureza na região delta do Nilo, a música e a dança desta região sofrem
influência de vários povos do Cairo que se encontra abaixo, Alexandria acima,
povos beduínos próximos que habitam a região de Fayoum, Baharya e Marsa
Matruh e não podemos esquecer que Soumboti se encontra no centro da região
Felahi. As bailarinas de Soumboti eram conhecidas não só por suas habilidades
como os quadris, mas também pela ousadia. Foram as primeiras bailarinas no
Egito que executaram a dança feminina com roupas de duas peças. As
Ghawazee que foram para a região de Soumboti e ficaram instaladas na região
delta do Nilo sofreram influência beduína e nas músicas está muito presente o
sotaque Felahi. Nesse estilo Ghawazee a gama de passos e muito maior, por
isso a maioria dos coreógrafos que ensinam Ghawazee ensinam sobre
Ghawazee Soumboti por ser mais rebuscado. As Ghawazee podem usar a
música local de onde se instalaram e com o tempo as músicas sofrem influência
e se alteram pois já foram feitas para a dança Ghawazee em si. Uma Ghawazee
da região Said utiliza em seu repertório músicas Said, Ghawazee Soumboti,
pode também utilizar músicas beduínas das regiões dos oásis próximos, além
da influência das músicas e sotaque Felahi.
Ghawazee Maazin (Sul) - É mais delicado, pés bem plantados, tronco levemente
a frente, foco no quadril e nos ombros, dança bem despojada,também utilizam
saggat.
Ghawazee (Alto Egito) Banat Maazin - As últimas Ghawazee do Egito.
As maiores representantes da dança Ghawazee no Egito ficaram conhecidas
como Banat Maazin (meninas Maazin). Elas eram ciganas da tribo Nawar que
desenvolveram um estilo familiar e único. A dança Maazin tinha características
muito peculiares e devido a localização (Qena e Luxor no Alto Egito) essas
bailarinas tornaram-se muito íntimas da cultura Said. Elas praticavam uma
versão feminina da dança do bastão que se fundiu a cultura local. Elas passaram
a usar as mesmas músicas e instrumentos utilizados no Alto Egito e inseriram
repertório de dança inspirados nos passos masculinos de Said e de Tahtib.
Youssef Maazin era pai de 5 lindas e talentosas bailarinas, eram elas Su’ad,
Fathiyya, Feryal, Raja e Khareya. Ele se sentia feliz por ter talentos, que
cantavam, dançavam e chegaram até a trabalhar no cinema. Elas sempre
dançavam em grupo, ninguém contratava uma só. Em sua dança, utilizavam um
improviso, uma se direcionava para o meio e levava o andamento da dança (esta
formação seria herdada mais tarde pelo American Tribal Style alterado e
elaborado recebendo o nome de improviso coordenado). O aumento do
extremismo islâmico e a proibição das danças nas ruas do Egito aconteceu nos
anos 80 e 90, nesse período a arte da família começou a enfraquecer. Yossef
faleceu, Suad se aposentou, Fathiyya faleceu de câncer muito jovem, Feryal e
Raja após fazerem muito sucesso conseguiram se casar e pararam de dançar,
restando apenas Kahreya. Com os rumores de guerra e fanatismo religioso, ela
foi forçada a parar de dançar e se casar também.
Ghawazee ou Awaleem?
Almeh (singular) e Alwaleen (plural), a tradução dada para Almeh é mulher culta,
intelectualizada, inteligente e educada para cantar, recitar poesia clássica,
dançar e dominar artes em henna. O termo Almeh foi utilizado na arte orientalista
francesa porém, retratando a dança do ventre como uma visão elitista nos países
europeus, muitas vezes deturpando e depreciando as mulheres egípcias. Almeh
tem diferentes conotações de acordo com a longa história do Egito e esse
mesmo nome significou diferentes personagens em cada época. Era ela quem
fazia os partos e cuidava dos doentes, ensinava as mulheres sobre o casamento
e sobre as artes do amor. A personagem original que representava uma Almeh
surgiu num período muito antigo, era uma mulher culta, com bens, conhecedora
da arte em geral. Também foram denominadas Almeh as bailarinas que
praticavam danças sensuais dentro dos palácios e muitas quando consideradas
mais elitizadas e chiques recebiam o nome de Rawanem. Durante as guerras
do oriente muitos homens morreram nas batalhas deixando suas mulheres e
filhos desprotegidos. Para resolver o problema de desigualdade entre homens e
mulheres a poligamia foi instaurada. Nesta época recebia o nome de Almeh uma
espécie de governanta que cuidava das casas e da organização. Eram mulheres
muito inteligentes, capazes de intermediar e controlar o equilíbrio de toda família.
Entre os séculos 19 e 20 o Cairo mantinha um clima mais relaxado inspirado nas
cidades da Europa e com isso surgiram os primeiros cabarés na rua das
pirâmides. Foi um período boêmio para os egípcios, as bailarinas passaram a
dançar nos cabarés e se sentiam mais elitizadas do que as Ghawazee e as
bailarinas da Era de Ouro, chegando a ter uma certa rivalidade já que ambas se
destacaram no mesmo período. As Awaleen usavam toda a arte das Ghawazee
porém se esforçavam para parecer mais elegantes. Elas também cantavam e
atuavam no cinema, se vestiam de forma mais elaborada e inseriam elementos
ocidentais na dança egípcia original, essa personagem se autodenominou Almeh
para se diferenciar das Ghawazees. Awaleem foram as artistas de um período
histórico quando a dança egípcia evoluiu da dança das ruas para os palcos e o
cinema, com isso ganhando o mundo. A influência do ballet que entrava no Egito
nesta época (Troupe Reda) e todo seu refinamento foi integrado ao trabaho das
Awaleem evoluindo até a dança dos dias atuais.
Nabaweya Mustafa – Uma Ghawazee Soumboti. Podemos destaca-la embora
não seja muito conhecida então não há muitas informações sobre sua carreira,
existem registros que dizem que ela antecedeu a era de ouro da dança do ventre
no Egito. Entre 1935 e 1955 participou de aproximadamente 47 filmes egípcios
com sua dança encantadora. Após esse período de grande sucesso se casou e
se aposentou da carreira de bailarina. Nabaweya é encantadora além da alegria
que transmite com suas apresentações possui movimentações de quadril
impressionantes. É um misto de suavidade e força, é referência nos estudos de
baladi e ghawazee. Algumas bailarinas brasileiras seguem estudando-a e
desenvolvendo uma dança similar, voltando sua arte para a dança Ghawazze,
podemos destacar Ila Cassandra, Crystal Kasbah, Aisha Almeh entre outras.
Khawals
Khawals foram bailarinos homens travestidos de mulher, muitas das
performances eram teatrais com caráter cômico. Alguns eram muito difíceis de
se diferenciar de mulheres verdadeiras. Os Khawals vieram fugidos da Turquia
onde muitas vezes despertaram a fúria do público ao serem desmascarados o
que geravam bastante confusões nos cabarés da época. Eles obtiveram
bastante sucesso na época quando substituíram as bailarinas que foram
expulsas dos grandes centros do Cairo e Alexandria. Gink, çengi ou koçek em
turco com o impulso do colonialismo e suas ideias sobre papeis de gênero esse
nome passou a ser utilizado como uma referência para homens homossexuais,
travestis e transsexuais e é até hoje. Após o banimento das Ghawazee
ganharam especial destaque já que por serem homens ofendiam menos o
decoro das famílias por exibirem se em público o que mesmo assim não foi capaz
de amenizar sua marginalização nos anos subsequentes.
Música e Figurino - Existem músicas específicas para dança Ghawazee, uma
música alegre e na maioria cantada, a letra e o sotaque vão mostrar se a música
é Ghawazee ou não. Os ritmos são variados. (maksoun, saidi, ayoub, felahi,
malfuf e soumboti). Os instrumentos mais utilizados são: mizmar, mijwi, rebab,
nay e percussão variada.
gosto pessoal, clima, poder aquisitivo, influência das modas em diferentes
épocas e regiões etc. O traje mais antigo é um vestido chamado yelek ou entari,
esta roupa tem um top separado, uma blusa colada por baixo cobrindo o ventre
e abaixo do vestido usa-se calças bufantes. Galabias com franjas de vidrilho
estilo de traje muito usado pelo grupo Banat Maazin. Diferentes adornos foram
utilizados na cabeça durante a utilização desse traje, saia até o joelho feita de
um material listrado com brilho, colete e blusa branca colada por baixo cobrindo
o ventre e os seios. Um dos mais importantes trajes e talvez o mais famoso foi o
uso da Galabia de Assiut moda no século 20. Assiut foi moda inclusive entre os
europeus, após ser considerado glamuroso e exótico traje oriental utilizado em
muitos filmes de Hollywood.
Para finalizar Marcia Dib diz que é comum o uso de muitos acessórios como
brincos, colares, pulseiras e guizos nos pés. Ela também conta que como elas
não tinham um lugar seguro para guardar seu dinheiro elas incorporavam as
moedas no tecido. Outra solução era trocar esse dinheiro por joias que elas
poderiam usar sempre.
Conclusão
Eu já fui aquela pessoa que acreditava na dança ritualista da fertilidade, que
comprou a ideia da dança devotiva, sagrada e excludente. Onde havia um
padrão e eu nunca me encaixaria, onde a dança se resumia em conceitos
orientalistas que me chegavam através do É o Tchan, Shakira e novela O Clone.
Conforme decidi aprender a dançar, cada vez mais a curiosidade e o desejo de
ampliar o conhecimento e compartilhar crescia. Hoje através de todo estudo e
pesquisa consegui entender a origem do que chamamos de dança do ventre,
seu surgimento no século 19 a partir da mistura de elementos de várias outras
danças do Norte da África e Oriente Médio com ideias, elementos e movimentos
ocidentais. Compreendi o que é de fato colonialismo e orientalismo e como
aconteceu a mistura a partir da invasão europeia nos territórios africanos e
asiáticos. Conhecer a dança e a história das Ghawazee, Awaleen, Kawals me
tirou a venda e pude me apaixonar pelo folclore, pelos ciganos, por uma etnia
mais periférica e menos glamurosa que despertou em mim a vontade de saber
mais e mais sobre eles e poder dançar sua dança como forma de inclusive
preservar já que pouco ou nenhuma menção é feito nas escolas de dança. Fiquei
quase dez anos dentro de uma escola e nunca havia ouvido falar em Ghawazee.
Saber da existência dos Kawals para acolher homens e tirar a fala
preconceituosa de que homem não dança porque não tem ventre e apresentar
referências, conhecimento com embasamento. Muita pesquisa e estudo ainda
precisa ser feita para conhecer a fundo cada um desses grupos e suas
particularidades e assim entender como as danças orientais eram representadas
pelo olhar europeu colonizador e difundida no ocidente até porque o Egito
recebeu influências externas mas também exportou e as danças consideradas
exóticas pelos ocidentais evoluíram, se transformaram.